LXV

Quando a gente é passarinho 
Que cantarola achando que é livre
Só porque a gaiola é grande 
E o espaço dentro é confortável 

As nossas asas começam a atrofiar 
E a gente acha que aquele esvoaçar 
De um lado ao outro das grades 
É tudo que a gente alcança 

Mas bem lá no fundo
Da nossa alma de bicho 
Que voa
A gente sabe

Que asa é matéria de céu
Que o azul é imenso e profundo 
E que o canto sem liberdade
Não é canto, é lamento.

E a gente lamenta mas sabe
Que ser livre começa de dentro 
Que um dia ao abrir a boca 
Em vez de canto, sai grito 

Aí as grades se rompem 
E as asas se levantam
Em nosso vôo mais bonito. 

LXIV - Mergulho

Desse jeito que a gente não escolhe
As maneiras tortas por onde o carinho cresce
Por onde uma mão encontra a outra 
E o afago da boca na curva do pescoço 
Que não é beijo, é cheiro,
Se sente com os lábios entreabertos; 
Dessa forma que a gente nunca sabe 
Quais sementes vão brotar em flores
E quais flores vão servir de encanto 
Para amores que contemplam o mundo sorrindo;
A gente nunca, nunca mesmo entende 
Que nenhum silêncio cala os olhos que se encontram 
E admiram juntos as cores da chuva 
Os tons de verde que se desenham 
Na forma do mar agitado 
Nas ondas que sobem selvagens,
Na íris colorida e profunda 
Onde moram os segredos das águas;
Desse jeito que a gente não escolhe.

LXIII

O que você diria
Se eu te falasse tudo que penso
Se eu te falasse tudo que quero
O que você diria?

Como seria o abraço 
Se os braços não fossem muros
Se os lábios não fossem domos?

Como seria a conversa 
Se tantos timbres se ouvissem
Se tantos corpos se amassem
Se tantos olhos se vissem?

O que você faria
Se eu te levasse a outros lugares 
Se eu te amasse com outros olhares
O que você faria?

LXII

Ela é feita de olhares 
De abraços que latejam 
De línguas de fogo
Que percorrem gentilmente
Minha tênue geografia.

E eu sou feito barco 
Que navega em seus mares
Indiferente à tempestade;
O que me assusta é a calmaria.

LXI


Um dia quente, sufocante. A noite chegou e eu nem vi, enfiada em um mundo branco, cheio de desencontros. Volto pra casa com algumas dúvidas e algumas certezas a mais. A Joana Angélica fervilha de universos em expansão. Penso em como tantos mundos se esbarram sem perceber, tanto mundo, todo mundo. Cada cabeça pensando em seus próprios problemas. Mesmo os problemas coletivos, encontram ressignificação individual e se tornam únicos, indizíveis. Minha cabeça dói e estou um pouco tonta. Alguns perfumes insistem em aparecer onde não deveriam. Entro no elevador com uma senhora que caminha com dificuldade. Quero a garagem, mas sem saber porque, subo até o décimo quinto andar. Estou onde tenho que estar. Estou mais perto de saber quem sou do que de saber quem fui. Um dia quente, sufocante. Uma noite desejada, a paz do sono que alivia, a companhia que abranda a dor. Aliás, hoje não dói. Amanhã talvez sim.

LVIII

Tem de repente um nó dolorido
Em algum lugar escondido
Uma coisa meio viva meio morta
Que desassossega o peito

Tem uma parte que se desentende
E uma parte que se identifica
Um lado que dói
Um lado que ri

E quanto mais profundo eu penso
Sei porque não quero pensar

E quanto mais profundo eu sou
Esqueço porque não quis desatar

LVII

Quando me dispo da vergonha que não é minha
Mas que em mim foi cravada 
Pela navalha letal (e lenta) da tradição 

Quando me visto de mim, nos mais sórdidos detalhes
O que me resta?

Como é que tu me sabes?
Mulher, sereia ou punhal
Ou aquele momento úmido 
De êxtase sem qualquer conceito

Então mergulho no que posso ser
Submergindo em tudo que ainda desconheço 
Tateando cega com olhos que lentamente 
Se acostumam a ver

LVI

Cada minuto em silêncio
Gasto com poucas verdades 
E preso num mar de inquietação 

Consumido em cada instante 
Vidrado em pequenas promessas
De uma certeza que nunca
Se manifesta real

Tenho dentro do meu peito
Ondas revoltas que quebram
Em silêncio torpe
E em gestos crus

O olho que vê, mente
O que não enxerga
Faz parte desse temporal. 

XCXV

A pergunta também pode ser: Quem seria, Ou quem teria sido? Se o tempo como um líquido denso Escorre por entre os meus dedos, A pergunta tam...