LXXIV - Quando não dói

Vem de um jeito avassalador

Arrebentando portas 

Fechando janelas

Vem tão perto que não há refúgio 

Não há canto ou aresta 

Onde eu possa me esconder.

Os olhos não mentem

O riso frouxo 

Disfarça as fagulhas que ardem 

Atrás de uma face transtornada. 

Posso escutar o ranger dos dentes 

E das navalhas 

Esperando para pingar de raiva e de sangue.

Vem de um jeito que não tem remédio 

Se não o amargor no fundo da boca 

O sono que entorpece

Mas os olhos não mentem 

E amanhã, uma nova marca 

Quando não pele, 

Alma. 

LXXIII

Acordei de manhã com um presságio dolorido, que se desmanchou feito brasa na ponta da minha língua. 

Ter sonhado daquele jeito foi a coisa mais estúpida que eu poderia fazer. Em todos os cantos teu cheiro me envolvia e me chamava.

Passei o resto do dia remoendo a lembrança que me escapava, a sensação conhecida que nunca experimentei. 

Naquele fim de tarde com sol escaldante, o calor parecia fazer tudo derreter. O céu, os prédios, as pessoas e seus semblantes mal humorados que prediziam uma vida de insatisfações. Em uma esquina ardente, eu passava o tempo alheia ao que o mundo dizia. Desde que percebi que não falávamos a mesma língua, comecei a entender e a recriar a mecânica da abstração. 

Fingindo completa naturalidade, passei por entre corpos que se balançavam ao som de um tédio quase palpável. 

Meu olhos pesados pareciam feitos de chumbo. Minha língua dormente desaprendera a conversar.

Escrevi em todas as paredes, com olhos cansados, as letras que me fariam te encontrar novamente naquela noite cinzenta e quente.

Aliás, eram cinzas as palavras que se arrastavam pelos meus lábios sem muito sentido, enquanto eu tentava conversar com qualquer pessoa que não entenderia metade daquilo que eu queria dizer. 

LXXII - Inteiro

Um pedacinho de céu 
No gosto da tua boca
No cheiro da tua roupa
No toque da tua mão 

Um pedacinho de sol
Em cada fio da tua barba
Em cada riso que é casa
No verde mel dos teus olhos

Um pedacinho de chuva
No colo que me adormece
Na língua que me enlouquece
No beijo que tanto me diz

Um pedacinho de chão
Em cada abraço sincero 
Em cada refrão de bolero 
No mundo que eu sempre quis.

LXXI - Anacrônico

Ser, mas não pertencer
Sentir tanto, até rasgar-se
Sentir nada, questionar-se

Vermelho que destoa
Das entrelinhas cinzas
Às entranhas cruas

Verter palavras líquidas
Por bocas que se desabotoam

E lágrimas abstratas
Por olhos que se desenganam. 

LXX

Às vezes as palavras brotam
Às vezes elas silenciam 
Como se o peito alguma vez calasse
Mas nunca cala.

Tem dias que quero gritar
Tem dias que quero sumir 
Como se a dor alguma vez partisse
Mas nunca parte.

O silêncio não me é estranho
Como no escuro assim
Tanto me conheço 

A voz que me falta é vermelha
Latejante e úmida;
Covarde. 

Se esconde em vez de se exibir
Pois se exibindo, existe
E existindo, choca!

LXVIII

Meus olhos tocam o chão
Queimando de saudade e desespero
Por tudo que teria sido
Em outro minuto de outro mundo 

Joelhos frouxos em pernas trêmulas 
Seguram o peso da resistência 
O amargo jeito de não dizer
De não fazer.

Revivo a memória do toque, 
Da simbiose em êxtase 

E o meu corpo inteiro vibra
Como se já não me coubesse.

LXVII

Quando eu existo 
Em cada espaço
Sou mulher
E em primeiro lugar
Quero existir como sou
Sentir como sinto
Saber como sei.

Em pele e espírito
Ora sinto e ora sangro
Com as afiadas farpas
Da intolerância
Do asco que se disfarça
De piada

E resisto.

Como flor selvagem
Que não se curva
Às intempéries
Como relva bruta
Que insiste em florescer.

LXVI

Eu devia querer teus olhos
Devia querer teu rosto
Em cima do meu como outrora
Eu quis

Sei que devia provar-te
Lamber as lágrimas que agora 
Pingam pelos teus olhares 

Eu devia querer ser tua 
Mais tua do que tua voz 
Do que tua dor que me atravessa
Em silêncio 

Eu sei que devia ser tua
Tua palavra quase nunca dita
Tua paixão em suspiro ofegante 
Eu devia querer ser 

Mas eis que me vi minha 
Eis que de longe 
Vejo teu rosto e contemplo
A distância tão natural

Eis que agora minha voz 
Abafa os ruídos 
De outros pensamentos

Eis que não quero mais nada
Que seja o que eu deva querer.

XCXV

A pergunta também pode ser: Quem seria, Ou quem teria sido? Se o tempo como um líquido denso Escorre por entre os meus dedos, A pergunta tam...