XCXV

A pergunta também pode ser:
Quem seria,
Ou quem teria sido?
Se o tempo como um líquido denso
Escorre por entre os meus dedos,
A pergunta também pode ser:
Quem ainda serei?

XCXIV

Penso que quero escrever
Como se escrever fosse o verbo
Que salvaria o meu corpo
E salvaria minha alma
Do deus da carnificina.
Penso que em cada linha
Eu verteria minha dor latente
Com tanta força
Com tanto jeito
Que seria o papel, corpo
E o corpo, verso
Num verbo intenso, 
Poema eterno. 

XCXIII

Sóbrio de mim mesmo 

Ébrio desperdício 


Vivo, mas enfermo

Eu, do fim ao início 


Começo e logo não vejo 

Ardiloso artifício 


Termino e nunca começo 

Beira do precipício. 

XCXII

Se você fosse eu

Por um dia

Ou por uma noite 


Seria quem tanto 

Conhece

Por dentro 


Seria o que imagina,

E seria também 

O que desconhece.


Se você fosse eu 

Por mil anos 

No espelho veria 


Os seus próprios olhos 

Castanhos


Se fosse o que não deseja 

Seria o que não resiste


Se você fosse eu por um dia 

Se fosse eu, quem seria?

XCX

Eu não sou o amor
Eu não sou a morte
Eu não sou a dor
Eu não sou a sorte.

Não sou o que crê 
Não sou o que pensa 
Não sou qual você 
Não sou sua sentença.

Eu não sou o estado 
Eu não sou a poesia 
Eu não sou o pecado 
Eu não sou a alegria.

Não sou o silêncio 
Não sou a explosão 
Não sou a violência 
Não sou a paixão.

Eu não sou o medo 
Eu não sou a vida 
Não sou o segredo
Não sou a ferida.

Sou tudo que vejo
Sou tudo que sinto
Sou o que desejo 
Sou um labirinto.

Sou água tranquila 
Sou maré selvagem 
Sou brasa e fagulha
Sou a tempestade. 

XCIX - par ou ímpar

Teu mundo em cores intensas 
Quentes e bem definidas 
O meu em nuances de cinza 
Continuum de cores despidas 

Teu verbo fluido, palpita 
Tua boca e teu corpo falam 
Meu selo, silêncio que habita 
Meus lábios sensíveis se calam 

Meu olho atento, febril
Teu olho ao perder-se,
Sutil 

Teu mundo tão simples, leveza 
Meu mundo, entropia
Estranheza. 

XCIII

Eu não quero mais ouvir 
Nenhuma palavra que soe exata

Ou que traduza em concreto 

Sua objetividade.

Eu não quero mais sentir 

Que quem fui há um dia 

Já está perdendo a hora. 

Quero que o que importa 

Esteja suspenso no tempo 

Há dez minutos, dez anos 

Ou dez milênios. 

Quero que a palavra cresça

E que encontre infinitos sentidos 

Para fazer entender 

O que é intraduzível

XCII

O adormecer outra vez me arrebata
E me atira úmida sob tuas falésias de pedra.
Ondas selvagens que gritam
Num coro constante de inquietas vozes
São as mesmas que apagam, silenciosa 
e suavemente, as palavras escritas na areia. 
E então, outra vez me encontro 
Muda de verbos, molhada de sons
Sob os teus abismos que tudo veem. 

XCI - Sou

Me desfaço diante do espelho

Em pequenos e densos pedaços

Silencio a explosão

E logo muda, agora ensurdeço 


Não sei se não falo ou não ouço 

Não sei por que me fragmento

Não sei se já fui intocável

Não sei de mim, não sei 


Meu corpo se vê e não entende

Meus olhos se buscam e não acham

Meu pensamento vaga


Sou só espirais de desejo 

Sou inteira, mas desencontrada

Sou parte, sou tudo, sou nada. 

XC

Há olhos que dizem tudo 
Olhos sentidos, olhos vivazes
Há histórias contadas no mudo 
Através de efêmeros olhares

Há olhares que se identificam
Olhares que eternos, perduram
Olhares que a tudo explicam 
Na imensidão, olhos que se buscam 

Em mistério profundo
Eu sei, são teus os olhos que vejo
São teus os olhos que beijo

No espelho e nos olhares outros 
Sei que são teus, só teus

Os olhos que me dão o mundo.


LXXXIX - Silenciosos olhares

Eu gosto do não dito
Das entrelinhas
Do imaginado

Gosto da meia sombra

Dos olhos de furta-cor 

Que me arrebatam os verbos


Eu não preciso falar 

Para que me entenda. 

XCXV

A pergunta também pode ser: Quem seria, Ou quem teria sido? Se o tempo como um líquido denso Escorre por entre os meus dedos, A pergunta tam...